Durante as férias escolares, João Vitor Oliveira Gomes, 19 anos, tinha o costume de ir para a casa da bisavó, Maria Luiza, em Ilhéus (BA). Quando o almoço era caranguejo, João notava que a bisa colocava a casca do crustáceo para secar e transformava em adubo para as plantas. Primeiro, ele se perguntou se aquele era um bom fertilizante. Com pesquisa e testes, ele descobriu não só que as plantas amam, como é um insumo barato e eficaz.
João começou a fazer experimentos em casa com semente de cacau. Todos os dias tirava fotos da planta que recebeu a casca de caranguejo e outra com adubo que a bisavó tinha em casa. O estudante encaminhava os registros para o professor de química Glauber Gonçalves, do Serviço Social da Indústria (Sesi) Adonias Filho, em Ilhéus, e eles comparavam. A planta com a casca do crustáceo se desenvolveu melhor no comprimento total e no tamanho do caule e da raiz.
Com resultados animadores, Glauber incentivou o estudante a participar do edital de iniciação científica da escola e transformar o simples experimento em projeto científico. Assim, nasceu o “Ferticagem: uma proposta sustentável e econômica”. As estudantes do 3º ano Yasmim Santos Santana, 17, e Giovanna Souza Viana, 17, logo se juntaram a João. Além do professor de química, o projeto conta com a participação da professora de biologia Nara Patrocínio.
Ainda na pandemia, eles começaram uma revisão bibliográfica e se viram diante de poucas referências na literatura científica sobre o uso do crustáceo como fertilizante. A casca do caranguejo-uçá, muito encontrado em Ilhéus, tem várias substâncias químicas e nutrientes, como o cálcio, que podem ser usados na adubação e na melhoria da qualidade do solo.
Um fertilizante seguro
Os estudantes produziram um fertilizante orgânico e seguro para o manuseio sem equipamento de proteção individual, com performance semelhante a fertilizantes presentes no mercado, porém mais econômico. O custo de produção de um pacote de 500g é de R$ 1,60.
Os testes foram feitos com o Ferticagem e o fertilizante utilizado pelos agricultores da região, o Super Simples A, em sementes de jiló, pimentão, cebolinha e tomate. O produto dos estudantes do Sesi Adonias Filho aumenta a produção de gás carbônico, elemento essencial para a respiração de microrganismos que melhoram o desenvolvimento das plantas. Com o Ferticagem, a média do crescimento foi de 3,5cm de caule. Já com fertilizante encontrado em mercado foi de 1,8cm.
“O nosso produto se mostrou bastante à frente do fertilizante que era usado pelos agricultores aqui. Então, dá para ver que o nosso produto tem eficácia e até acelerou o crescimento”, relata João Vitor.
Ao fazer as análises, os estudantes sentiram na pele o que muitos agricultores passam ao não usar os EPIs. “Quando a gente foi fazer esse teste tivemos que comprar o fertilizante químico e EPIs. A Yasmin, por exemplo, sentiu dificuldade para poder manusear, e o olho dela chegou a ficar vermelho”, conta Giovanna.
A história foi diferente com o fertilizante produzido da casca do caranguejo: não houve problemas quanto à segurança e à saúde no manuseio do adubo.
Durante as primeiras etapas, eles aplicaram uma pesquisa para conhecer o cenário da agricultura familiar, quais fertilizantes eram mais comuns e as dificuldades. Uma das agricultoras relatou o custo como maior empecilho para ampliar a produção agrícola. A alta no preço dos fertilizantes devido à guerra entre Rússia e Ucrânia fez os trabalhadores quase desistirem.
“Os grandes agricultores têm recursos e incentivos do governo ou de bancos. Já os pequenos agricultores, não. Uma das agricultoras com quem conversamos disse que o que quase a fez desistir da produção familiar era a questão financeira”, acrescenta o orientador Glauber Gonçalves.
Uma vez que o fertilizante da casca de caranguejo apresentou resultados promissores, os estudantes entraram em contato com agricultores familiares para fornecer o produto. Os credenciados ao projeto recebem o insumo de graça, pois o propósito do Ferticagem também é ajudar o crescimento econômico da região e propor outro uso ao resíduo do consumo da carne de caranguejo.
Da casca ao grão
Atualmente, o projeto conta com cinco barracas de praia parceiras, que comunicam aos clientes que as cascas do caranguejo consumido ali têm descarte correto. Um dos critérios para ter uma barraca parceira é se o estabelecimento respeita o período de defeso do animal. Esse é o período de reprodução dos caranguejos e é proibido capturar, transportar e comercializar a espécie.
Recolhidas as cascas, Giovanna, Yasmin e João limpam o insumo com água sanitária, secam em estufa e trituram até chegar em 18 mesh (unidade de medida de uma peneira). Giovanna explica que são processos simples.
“Qualquer um consegue fazer isso porque são técnicas fáceis. Por exemplo, você pode triturar o caranguejo com a mão. A granulometria não vai ser a mesma, mas o resultado vai ser bom. A gente tem água sanitária em casa e a estufa pode ser substituída pelo forno”, detalha.
Contudo, a estudante reforça que os resultados com grão menor são melhores porque “a permeabilidade é maior e a decomposição também vai ser mais rápida”. Os resíduos das cinco cabanas credenciadas se tornam adubo para sete agricultores.
O credenciamento de produtores rurais é feito a partir de um formulário. O principal pré-requisito é ter de 2 a 3 hectares para ser considerado um agricultor familiar. Após a aplicação do questionário, os estudantes vão analisar e avaliar as respostas.
Ficou interessado no fertilizante de casca de caranguejo? Para ter mais informações e se tornar um agricultor credenciado, basta contatar o orientador Glauber Gonçalves: (73) 9127-8786
Economia circular
Hoje, João, Giovanna e Yasmin buscam uma parceria com a Secretaria de Agricultura da Bahia para poder fazer esse sistema de credenciamento com o apoio deles e alcançar mais agricultores. Eles também produziram o e-book ”Cultivando o futuro: práticas sustentáveis para uma agricultura familiar rentável” e querem oferecer treinamentos.
A proposta é auxiliar os agricultores com o fertilizante e com dicas de segurança, práticas de vendas, marketing, questões ambientais e sustentabilidade. A longo prazo, com o apoio do estado, a ideia é incentivar que os agricultores forneçam legumes e hortaliças cultivadas com o adubo para a barraca de praia parceira.
Projeto para a ONU ver
Dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas, o Ferticagem se enquadra em 10: Erradicação da Pobreza, Fome Zero e Agricultura Sustentável, Saúde e Bem-Estar, Trabalho Decente e Crescimento Econômico, Indústria, Inovação e Infraestrutura, Redução das Desigualdades, Cidades e Comunidades Sustentáveis, Consumo e Produção Responsáveis, Ação contra a Mudança Global do Clima e Parcerias para os Objetivos.
Para o orientador Glauber Gonçalves, a colaboração entre o Sesi Adonias Filho e os agricultores locais pode promover o desenvolvimento econômico, a preservação ambiental e o bem-estar das comunidades. “O projeto é um exemplo prático de como o uso responsável de recursos naturais e a aplicação de práticas sustentáveis podem contribuir para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU”, avalia.
Horta na escola
O projeto foi finalista da última edição da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace). Depois da grande repercussão, o Sesi Adonias Filho disponibilizou um espaço para que alunos investiguem qual planta responde melhor ao fertilizante.
“A visibilidade foi muito significativa aqui na escola. Destinaram um terreno dentro da unidade para a gente construir uma horta e fazer novos testes com outra variedade de plantas, além do que a gente já fez”, explica Glauber.
Para o professor, a maior moeda de troca em orientar os estudantes é o engajamento dos alunos na ciência. Perceber que as escolhas que eles farão tiveram influência da iniciação científica não tem preço. Em ano decisivo, Giovanna está em dúvida entre medicina e engenharia química. Já Yasmin quer ser farmacêutica.
“A partir do desenvolvimento do projeto, do contato com laboratório e com o mundo da ciência, eu comecei a me encontrar na farmácia. Eu comecei a me dedicar à questão de fazer experimentos, de ter curiosidade e entender o que está acontecendo ao meu redor”, conta Yasmin.
João quer devolver tudo o que aprendeu para as pessoas. A meta é “transformar outras pessoas através da educação da mesma forma que eu fui transformado”. Ele pretende fazer engenharia de biotecnologia ou biossegurança e licenciatura em ciências da natureza. Até lá, todos eles pretendem continuar contribuindo para a comunidade de Ilhéus.
Afinal, como o professor Glauber disse: “Onde tem oportunidade, esses meninos querem levar o projeto, incrementar, melhorar e inventar”.
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