Eletice Rangel*
Você já refletiu sobre o significado do que realiza profissionalmente em sua vida? Muito além dos frutos visíveis na realidade concreta, até que ponto a carreira que você abraçou reflete um chamado interno?
A inserção no mundo do trabalho, para muitos, é obrigatoriamente direcionada pela necessidade de sobrevivência. No início da idade adulta, para aqueles que desfrutam de uma condição socioeconômica favorável, surge a oportunidade de escolher uma carreira alinhada a propósitos influenciados. Contudo, essa escolha nem sempre reflete anseios genuínos e a maturidade para reconhecê-los ainda não foi plenamente desenvolvida.
Desde a infância, nossa visão de mundo é moldada pela vivência familiar e pelas influências culturais e sociais. Na fase inicial da vida adulta, nossas escolhas tendem a refletir crenças e valores introjetados, como se fôssemos uma folha em branco preenchida por uma aquarela que nos é impressa. Assim, é comum que nossas decisões surjam como resposta a projeções inconscientes que mascaram desejos, conflitos e expectativas internas.
Ignorando nossa verdade mais íntima, podemos seguir os passos profissionais dos pais sem refletir sobre nossas próprias aptidões, ou tentar compensar suas frustrações, movidos por lealdades invisíveis a feridas familiares.
Há opções que abraçamos por medo de nos defrontarmos com algo que tememos, como, por exemplo, quando escolhemos uma carreira mais estável por receio de lidar com a possibilidade de um fantasma chamado fracasso, ou ainda porque a forma como nos vemos e avaliamos nossas próprias habilidades e potencialidades reflete uma autoimagem negativa, que pode nos levar a escolhas mais limitadas e menos ambiciosas.
Presumindo que grande parte do nosso dia é dedicada ao trabalho, viver uma rotina que não espelha nossa essência pode se tornar uma fonte de insatisfação silenciosa, tal qual um pequeno buraco no solo que, aos poucos, se amplia em erosão
Muitas vezes, a profissão quando definida por um significado que julgamos simbolicamente grandioso, para além do que realmente representa, projeta a ideia de status, sucesso ou aceitação social, espelhando um ponto de vista da sociedade. Ainda que tenhamos alcançado cargos, posições e salários almejados, traduzidos em segurança ou estabilidade, pode chegar um momento em que tudo isso não mais satisfaça, e seguimos envolvidos pelas demandas da realidade concreta, que nos exigem esforço e atenção para atender o que não ecoa com a natureza dos nossos valores mais íntimos.
Presumindo que grande parte do nosso dia é dedicada ao trabalho, viver uma rotina que não espelha nossa essência pode se tornar uma fonte de insatisfação silenciosa, tal qual um pequeno buraco no solo que, aos poucos, se amplia em erosão. Quando nos damos conta, o terreno já está comprometido, afetando a vida em outros aspectos que antes pareciam acomodados.
Nessa existência transitória e de incertezas, uma voz interna costuma se impor para se fazer ouvir, quando não conseguimos associar a carreira escolhida com os valores característicos da nossa essência. E muitas vezes, sintomas incompreensíveis, reveladores de insatisfações e inquietações começam a aparecer. Neste caso, perdemos a oportunidade de unir trabalho e vocação – dois caminhos que se encontram dando sentido maior à vida, por meio da expressão mais genuína do Ser.
Nesse contexto, questionamentos emergem como uma espécie de crise. Dúvidas, medos e a perspectiva de romper com o passado abrem espaço para um redemoinho emocional que exige cuidado e escuta. Estamos, então, diante de um conflito nebuloso e aparentemente indecifrável entre o que fazemos e quem realmente somos.
Geralmente, esses impasses emergem por volta dos 40 ou 50 anos – a chamada crise da meia-idade – acompanhados por sinais físicos e psíquicos que nos fazem perguntar: há algo em mim que deseja florescer, para além da história que internalizei como sendo quem sou?
E se o que se chama de crise fosse um chamado da alma para um alinhamento com a nossa essência? E se o nosso trabalho pudesse se tornar uma manifestação mais verdadeira de quem somos?
Vários são os motivos para que uma pessoa busque mudar de carreira. Trata-se de um processo complexo e multifacetado, carregado de medos, incertezas e motivações. Compreender tudo isso é importante para empreender essa mudança e, nesse percurso, ouvir o chamado interior da alma se torna um movimento indiscutivelmente desafiador e, ao mesmo tempo, valioso.
Vários são os motivos para que uma pessoa busque mudar de carreira. Trata-se de um processo complexo e multifacetado, carregado de medos, incertezas e motivações
Um dos grandes desafios que se apresentam nesses momentos é a desconstrução do passado e o medo do desconhecido. Deixar para trás o que construímos e abraçamos como nosso futuro – considerado, muitas vezes, até mais promissor – nos assusta com a intensidade de quem, em plena viagem rumo a um horizonte desejado, é inesperadamente colocado em um trem para uma estação desconhecida.
Romper com a rota tida como refletidamente calculada torna-se uma necessidade imperiosa, diante da segurança ilusória que permeia a vida. Nada é seguro e tudo é transitório no campo da existência. E resistir a isso gera muito mais dor, pois ao nos deixar ser levados ao sabor dos ventos conhecidos, perdemos a oportunidade de encontrar um polo de habilidades e capacidades dentro de nós. É hora de modificar as crenças que tínhamos sobre a vida, sobre quem somos e sobre o que nos define, e não existe prazo para isso.
Olhar para outras direções nunca antes avistadas pode ser libertador. Aquilo que parecia apenas uma mudança profissional revela-se, então, como algo maior, capaz de impactar diversas áreas da vida. Afinal, somos um todo, e o equilíbrio entre as dimensões da existência alicerçam a nossa alma.
E qual seria a recompensa por enfrentar tal desafio? Somos sementes que guardam, em si, o potencial para florescer com formas, cores e perfumes únicos. Mas, para florescermos, é preciso nos permitir romper a casca e crescer.
Frente a um terreno em erosão, é necessário cuidar da nossa alma com uma paciência corajosa. Assim como um terreno desgastado e pouco produtivo precisa pacientemente de técnicas eficazes para ser transformado em terra fértil, precisamos olhar para nosso universo interior de forma corajosa e acolhedora promovendo o rompimento das sementes que adormecem em nós e que nos levará à revelação do nosso potencial.
No processo de autoconhecimento, que acontece por meio da exploração intransferível do nosso chão interno, podemos encontrar o que amplia nossa alma na carreira a ser escolhida. Dessa forma, seremos capazes de promover o encontro entre o que fazemos e quem realmente somos. Seguiremos, então, na nossa jornada por caminhos mais felizes, autênticos e harmoniosos edificados pela expressão do nosso Ser, que se tornará, assim, mais livre e iluminado.
*Eletice Rangel é Psicoterapeuta Transpessoal Sistêmica, atua no atendimento de adultos e é Economista pela UFBA (@psicoterapeuta_eleticerangel)














